Menu
Instagram

Adriana Vignoli e Matias Mesquita

Mundos concretos, líquidos e gasosos
09/07 - 13/08/2022

A Casa Albuquerque iniciou o calendário do segundo semestre de 2022 apresentando Mundos concretos, líquidos e gasosos, primeira exposição conjunta dos artistas Adriana Vignoli e Matias Mesquita. A mostra marca a aproximação efetiva entre a galeria mineira – que abriu as portas em 2020 na capital federal – e a produção artística local, oficializando a representação de Vignoli e Mesquita.

Nas palavras de Divino Sobral, que assina o texto da exposição, logo abaixo, entre as afinidades que conectam os trabalhos dos artistas estão “a potência do sensível, a latência do invisível, o perigo do sublime, o impalpável da vida, o contato com os mitos e o sagrado”.
Tangenciando questões comuns, Adriana e Matias dialogam, enquanto mantêm-se fiéis às suas pesquisas, tornando tangíveis e poéticas suas inquietações.

Texto de Divino Sobral sobre a exposição:
ADRIANA VIGNOLI E MATIAS MESQUITA – MUNDOS CONCRETOS, LÍQUIDOS E GASOSOS
A galeria torna-se lugar de encontro, onde os percursos de Adriana Vignoli e Matias Mesquita se parelham como águas de dois rios que, de densidades diferentes, correm juntas sem se misturarem. São artistas que compartilham a vida, o afeto, o ateliê e até mesmo materiais e questões visuais. A seu modo, cada um com seu procedimento formal, com seu léxico e sua gramática, cria seu universo poético próprio, feito de encontros entre transparências e opacidades.


Na exposição, ao fruir a criação de um, o olhar depara-se com a obra do outro e inicia novo ciclo de fruição, refletindo sobre as convergências existentes entre os trabalhos, que operam com poéticas situadas no terreno da atemporalidade, partindo do presente para se moverem em direção ao passado e ao futuro, e que, nesse sentido, recompõem a ideia de duração bergsoniana, entendida como uma continuidade que liga os tempos e que fundamenta a complexidade da memória, como arquivo das experiências vividas capaz de orientar as que virão. São trabalhos claramente contemporâneos, produzidos pelas indagações e angústias do agora, mas que na flexão inteligente da história da arte (feita de maneira distante de qualquer procedimento de apropriação, releitura, paródia ou citação) e no entendimento do fluxo temporal da cultura humana, encontram modos de escapar aos processos mais recorrentes neste momento de exaustão que vivemos, conquistando assim as suas singularidades.


São dois artistas que discutem as propriedades dos materiais em relação aos procedimentos e técnicas de construção do espaço, seja bidimensional seja tridimensional, assumindo diretamente suas qualidades físicas, químicas, plásticas e poéticas, seus significados imediatos e subterrâneos. Em ambos, vemos a utilização de materiais transparentes, de cimento, metal e tinta a óleo, vemos, também a relação intrínseca travada entre esses materiais conviver com a representação de seres ou fenômenos naturais. A materialidade participa da constituição das obras integrando seu corpo e seu sentido: para Mesquita, não se trata de suporte e de substâncias depositadas sobre ele, mas da matéria fundamentalmente condutora da linguagem plástica; para Vignoli, trata-se da pura substância alquímica em constante transmutação e diretamente associada à vida.


São artistas que constroem os espaços de suas obras problematizando, de alguma maneira, questões advindas da arquitetura. Matias Mesquita faz uso de materiais diretamente associados à construção civil, como barras de ferro que criam as estruturas de sustentação das pinturas objetos sobre a parede, ou que formam o esqueleto dos fragmentos de colunas, dependurados do teto como pinturas tridimensionais; emprega as qualidades de solidez, resistência e opacidade do cimento, para armar a moldura de concreto liso que encerra a imagem pintada dentro de uma pesada caixa, ou para criar superfícies pictóricas que emulam texturas pétreas, executando função tradicionalmente atribuída à tinta. Adriana Vignoli parte da escultura desprendida da base e passa a relacionar-se diretamente com a arquitetura, mobilizando diferentes vetores espaciais de acordo com as operações de suspensão, flutuação, balanço e equilíbrio das formas em equação com o espaço em torno e com a força da gravidade. Ao ocupar ou se relacionar com parede, teto e piso, as esculturas negociam com o espaço ao mesmo tempo em que são geridas por ele, sendo desejo da artista criar uma arquitetura interna no próprio trabalho. O cimento também aparece no rol dos materiais empregados por Vignoli, mas seu uso é distinto do feito por Mesquita: pequenos blocos perfurados integram composições escultóricas erotizadas; mínimas formas geométricas retangulares ou redondas (reproduzidas também em cerâmica) são afixadas sobre a superfície do papel nos desenhos-colagens, conceituados como potencializadores de esculturas vitais.


Ao refletir sobre os trabalhos de Mesquita e de Vignoli, é inevitável problematizar a poética da transparência presente no interesse dos dois artistas. Sob uma moldura mais teórica, o uso da transparência feito nos trabalhos exibidos nesta exposição, leva a considerar que os artistas respondem, de modo muito particular, poético e crítico, às teorias que pensam a transparência ligada à arquitetura modernista da caixa de vidro, que objetivava dar a ver simultaneamente o dentro e o fora, como exemplo de edificação de uma sociedade que não tinha o que esconder, espírito utópico, e hoje falido, que animou a construção de muitos edifícios de Brasília, cidade onde vivem. Respondem ainda à necessidade de transparência na administração do Estado, nas negociações políticas e nas conduções jurídicas, visando coibir os abusos e crimes praticados por membros da instituição pública contra a sociedade. Enfim, a vida contemporânea na época das redes sociais, como aponta Byung-Chul Han em Sociedade da Transparência, vive o espetáculo da completa exibição pública do indivíduo, que tudo mostra e nada oculta, vive a exibição exagerada que desfaz o mistério e o enigma da vida.


Na história da pintura de paisagem, as camadas diáfanas de tinta foram valorizadas para a obtenção dos efeitos atmosféricos que contribuíram para o aprimoramento da ilusão de profundidade do espaço. Há nas obras realizadas por Mesquita um diálogo com a pintura paisagística, intenso a despeito de ser, também, discreto, enfocando um ponto específico. No interior de caixas de concreto ou de bandejas de ferro oxidado são executadas pinturas figurativas ou abstratas por meio da intercalação de camadas de tinta a óleo e de resina epóxi, material que cria transparência no interior da própria pintura, como se a envidraçasse por dentro. O mundo gasoso das nuvens, tão caro na trajetória do artista, surge tanto chamando pela historicidade da pintura de paisagem quanto fixando o flagrante do cotidiano, sendo representações da impermanência e da transformação constantes. Inseridas entre duas placas irregulares de cimento tratado como matéria pictórica, as abstrações parecem detalhes extraídos das nuvens e ampliados até a perda de referente, e funcionam como metáforas das nuvens digitais que tomam o cotidiano do século 21.


Formadas por água em estado gasoso, as nuvens povoam o imaginário do céu, desde a interpretação dos profetas do tempo atuantes na região do semiárido nordestino que preveem chuvas ou secas, até as narrativas das aparições do sagrado envolvendo, por exemplo, figuras da iconografia católica como anjos e a Virgem Maria. Embutido na representação das nuvens feitas por Mesquita está o conceito de sublime, que se relaciona com a grandiosidade incontrolável da natureza, contendo algo de ameaçador e violento, como as nuvens do céu apocalíptico, mas também, está algo de utópico à medida em que os acontecimentos do céu são iguais para toda a humanidade. A conversa com o sagrado que Mesquita entabula, surge com linguagem diferente na obra de Vignoli.


As representações de homens trabalhando em construção, feitas por Matias Mesquita a partir de registros fotográficos, lembram uma equipe de pedreiros construindo calçamentos no espaço urbano. Por um lado, parece haver a intensão de inserir uma espécie de comentário social no conteúdo das obras, pois os conjuntos humanos estão, também, encerrados nas caixas de concreto, que permitem sua interpretação como aprisionamento em um sistema de trabalho caracterizado por cerceamento e opressão. Por outro lado, há a insinuação de um diálogo indireto com os trabalhos de Vignoli que lidam com a lapidação de cacos de velhas calçadas visando resultados da joalheria.


Categoria que historicamente não representa paisagens, mas que interfere diretamente na paisagem e no espaço público, a escultura operou por séculos com modelo fundado em volume, massa, peso e nobreza do material para representar a imortalidade de deuses, heróis e homens de poder. Adriana Vignoli evidencia a ruína do modelo histórico e opera com a leveza da forma, com a fragilidade e instabilidade dos materiais, com o espaço vazado em situações de equilíbrios e de tensões, com o moer das matérias escultóricas reduzindo-as a pó, como o mármore, ou com a lapidação de restos vulgares, como um pedaço de calçada, valorando o que era destituído de valor.


A transparência surge nas esculturas da artista pelo emprego das vidrarias laboratoriais, material que remete ao ambiente de ensaio e experimentação da alquimia, à manipulação de substâncias químicas com o desejo de acelerar a atividade do tempo da Natureza, conceito que os alquimistas aplicavam na pretensão de chegar ao conhecimento capaz de produzir o elixir da imortalidade humana e a transformação dos metais em ouro. Adriana Vignoli insere em suas composições escultóricas peças fundidas em latão, que representam elementos de uma flora absurda, como o fruto de pequi nascido de uma folha de espada-de-são-Jorge ou os cipós pendentes. Chamo composições porque são obras feitas da associação entre peças de diferentes formas e materiais, cuja disposição remete a um sistema de engrenagens sexualizadas, movidas pela força do erotismo ancestral que impregnou toda a interpretação do mundo nos primórdios da cultura humana. No interior dos recipientes de vidro a artista deposita ora pó de mármore, ora terra vermelha do cerrado, ora água que alimenta plantas diversas retiradas dos jardins das superquadras do Plano Piloto, criando um mundo líquido para abrigar suas bio esculturas que, de alguma maneira, tocam na paisagem brasiliense enquanto habita em seu corpo a própria vida, a Natureza.


A paisagem em Vignoli pode ser vista de diferentes maneiras: em processo de ensaio nas bio esculturas; metamorfoseada nas plantas quase surreais fundidas em latão; manipulada nos desenhos-pintura-colagem que a artista chama de “horto” e onde são representados os enxertos das diversas plantas de jardinagem e de proteção; transmutada nas esculturas ritos-performances que ganham registros em fotografia.


Nestes últimos trabalhos, documentados em fotografia, tudo é potencializado e ressignificado pela escultura que ativa a paisagem pelo fluxo de energias trocadas entre os quatro elementos, que entram em relação com círculos suspensos sobre cursos de água no meio da mata, aros dispostos solenemente para captar a vibração mágica e misteriosa do ar e da luz transmutados pelo ritual, alianças equilibradas no espaço de passagem do visível ao invisível, elos entre a materialidade e a espiritualidade. As esculturas e a natureza tornam-se a mesma coisa, em união testemunhada pelas chamas do fogo sagrado. Como em uma congregação mística feminina, a manipulação das peças somente por artistas mulheres dentro de um ritual envolvendo terra, água, ar e fogo, convoca a lembrança do feminismo ancestral desenvolvido pelas congregações de bruxas, sábias e alquimistas. Para a artista o rito abre na paisagem um portal místico para os caminhos de purificação e cura das dores humanas.

As muitas afinidades manifestas entre os trabalhos de Adriana Vignoli e Matias Mesquita – a potência do sensível, a latência do invisível, o perigo do sublime, o impalpável da vida, o contato com os mitos e o sagrado – não são suficientes para borrar a identidade de suas pesquisas que se concretizam na plasticidade dos materiais e em camadas de significações que transitam entre mundos concretos, líquidos e gasosos.